Por Stella Rios
É uma
ilusão imaginar que a periferia de Salvador, uma das capitais musicais do
Brasil, está dividida entre Ivete Sangalo e Claudia Leitte ou
entre Chiclete com Banana e de Asia Águia. A popularidade das cantoras
e dos grupos de axé ainda é alta, mas o coração da periferia de Salvador também
pulsa por outros dois nomes: Pablo,
a voz romântica e representante mais popular do arrocha, e Igor Kanário,
o “Principe do Gueto”, maior nome do pagode baiano.
Quem percorre as ruas de bairros populares como Periperi,
Boca do Rio, Cajazeiras e Paripe vê a disputa estereofônica em altos decibéis
de carros tocando o romântico arrocha de Pablo e seus agudos de causar inveja a Zezé di Camargo, ou o groove pesado com tambores
frenéticos do pagode baiano de Igor Kanário e suas letras polêmicas.
Natural de Candeias, interior da Bahia, Pablo teve
uma infância sofrida. Ao deixar a casa dos pais muito cedo, vendia picolés na
rua para sustentar o sonho de seguir a carreira de cantor. Aos 15 anos,
cantando no grupo Asas Livres , ficou famoso pelo
bordão “arrocha”, como um incentivo para o público dançar mais juntinho. Foi o
batismo do gênero que junta melosas melodias de teclados e batidas eletrônicas
com letras extremamente românticas – sempre atravessadas por agudos de cortar o
coração.
Com o grupo Asas
Livres, Pablo chegou a vender um milhão de cópias e pavimentou seu caminho para
o sucesso como “a voz romântica”. Ganhou fama e dinheiro nas principais
casas de seresta do Nordeste. Entre seus maiores sucessos estão "Casa ao Lado" "Casa Vazia" e a excelente "Na Hora H"
A fama de Pablo do
Arrocha, como também é conhecido, já alcançou o patamar de superstar na Bahia.
No último carnaval, teve um trio elétrico próprio no circuito Barra-Ondina, e
gravou com artistas como Claudia Leite, Aline Rosa e Daniela Mercury.
Já Igor Kanario é a voz dos jovens excluídos na periferia
da quinta capital brasileira mais violenta e a 14ª mais violenta do mundo em
cidades acima de 300 mil habitantes (a cidade mais violenta do Brasil é Simões
Filho, que fica no conurbano da capital baiana).
A sobrevivência diária desses
jovens aparece como manifesto nas letras de Kanário. “Dedo Calibrado”, um hino
na periferia de Salvador, traduz esse sentimento de frustração e humilhação
fruto da falta de perspectiva e uma indignação que busca a violência como forma
de reação: “Tenho que viver/ me defender/ às vezes falta
água pra beber/ comida pra comer
/ como é que dorme/ como que sonhar/
vida medonha de ilusão/ ilusão/ eu chorei a cada porta na
cara/ família não liga/ família disfarça/ de te olhar com olhos da decepção/
decepção/
peço a Deus/ que
livrai-me do mal/ me tira dessa vida de cão/ por isso quando eu desço/ é dedo
calibrado/ é sangue no olho/ comigo é mais em baix
Em outra música, chamada de “Cyclone”, uma marca de roupa
muito usada pelos jovens baianos, mas que os fazem ficar rotulados como
“suspeitos” pela polícia, Igor dá o recado: “Cyclone não é marca de ladrão/ é a
moda do gueto/ mas com toda discriminação/ eu imponho respeito”. A música
remete a uma fã declarada da banda, Kelly
Cyclone , conhecida como a “Dama do Pó” de Salvador,
assassinada em 2011.Igor morou quase a vida toda no bairro humilde e violento da
Liberdade. Começou muito cedo a cantar, quando teve que, no susto, substituir o
vocalista que havia faltado da banda Produsamba.. Depois disso cantou ainda na bandasCoisa
do Samba, Patrulha do Samba e Swing
do P. Ccriou a banda A Bronkka, com a qual alcançou o estrelato da periferia e acabou
saindo para tentar carreira solo no final de 2012. O Príncipe do Gueto ocupa
hoje o lugar de Ed
City, outro fenômeno da
periferia de Salvador. Como Pablo do Arrocha, saiu no último carnaval em trio
elétrico próprio
A disputa sonora entre o arrocha e o pagode baiano, que
permeia os becos e vielas das comunidades pobres de Salvador, revela um pouco
da alma dos soteropolitanos. Ao mesmo tempo em que conservam a alegria, o romantismo
e a disposição para fazer as festas mais animadas do Brasil, sofrem com a
injustiça social que não abre horizontes para os mais necessitados.
Nesses bairros, a música bem que
se esforça para ocultar a violência nua e crua que se revela dramaticamente com
o crescimento dos esquadrões da morte. As vítimas: jovens negros da periferia,
o mesmo público que idolatra Pablo e Igor Kanário
Fonte: CartaCapital
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